Contra
a minha vontade, segui para a divulgada conferência sobre saúde
preventiva, a ser proferida por um renomado psiquiatra internacional.
Não dava a mínima importância ao acontecimento, aliás, classificava-o, imprudentemente, como coisa de louco.
Meu descaso talvez se devesse ao fato do renomado especialista ser um psiquiatra.
Nada
contra a classe em geral, mas no passado, tive um vizinho que era
profissional da área que, sinceramente, não recomendaria a ninguém, o cara era um tantã.
Perdi a conta de quantas pessoas precisaram de auxílio após se tratarem com ele, acabei marcado pela incompetência daquele médico maluco.
A
minha esposa não compartilhava de minhas convicções sobre o
assunto, talvez por causa das esquisitices que ultimamente eu manifestava.
Enquanto achava que aquilo tudo não passava de historietas para boi dormir,
minha família inteira estava deveras preocupada com a minha rabugice.
Relutante,
inscrevi-me no tal congresso e, no dia aprazado dirigi-me ao salão de
convenções do hotel onde aconteceria a importante palestra sobre
prevenção no tratamento de enfermidades.
Claro que cheguei atrasado, na verdade, estava me acostumando a chegar tarde em tudo quanto é compromisso.
Nos cultos de oração no meio da semana, pelo menos, cinco minutinhos de atraso podia-se contar no relógio; na escola bíblica, eu só chegava depois da abertura e, na celebração – o principal culto da igreja – não me lembro de ter primado pela pontualidade.
A igreja, pelo que parece, entrou em meu ritmo, todos se atrasam um pouquinho, seja qual for a reunião marcada.
O famoso psiquiatra já estava falando quando tomei o lugar numa poltrona dos fundos, caso não gostasse do ambiente, poderia me esgueirar com facilidade sem que fosse notado.
Não é assim que fazem os membros de igreja?
“Quero demonstrar aos senhores alguns sinais que indicam com clareza quando a reserva nervosa está fora de controle” - falava com voz anasalada, defendendo sua tese, o médico estrangeiro.
Sem
querer, fui despertado pela expressão “fora de controle”, dado que me
achava um sujeito com autocontrole muito acima da média.
Sempre
cuidei para que nada escapasse ao meu comando, vivia a repetir uma
frase, como se tivesse decorado uma lição de casa: “está tudo sob
controle”.
"O primeiro sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada, é a irritabilidade.
O indivíduo, antes calmo e cordato, torna-se uma pilha de nervos, principalmente, com a família e com os mais próximos e coitados dos que têm que aturar esses nervosinhos” - despejou, sem meios termos, o famoso doutor.
Naqueles
dias eu andava azedo, com o humor em sequidão de estio, em
pensamento já tinha mandado um par de vezes, o doutorzinho engomado
com suas teorias e tudo, às favas.
“O segundo sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada é a falta de concentração.
A mente do indivíduo passa a divagar com uma facilidade incomum. Não domina nem os assuntos mais corriqueiros.
Perde a concentração em tudo o que se propõe a fazer” - explicitava o famoso doutor aos seus ouvintes, que de tanta atenção, mal piscavam os olhos.
Confesso que, ultimamente, estava com dificuldades em concatenar ideias sequenciais em meus sermões.
Se não as escrevesse, estava frito, a cabeça não ajudava mais, às vezes, falava sobre um determinado assunto e, ao dar uma pausa, não conseguia mais atinar com o que vinha dizendo, preocupado, cheguei a pensar que estava pirando de vez.
Não é preciso dizer que a esta altura da palestra, o especialista começava a dominar a minha atenção.
“O terceiro sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada é o esquecimento.
O indivíduo passa carão só porque não consegue lembrar dos nomes de amigos e conhecidos. Mas
o cúmulo da vergonha é quando esquece os nomes de remédios, ruas, marcas,
estabelecimentos... não serve mais como fonte de informação nem
para as crianças.
O cidadão, que antes era tão vivaz, transforma-se num completo panaca ambulante.
Com
a sequência de esquecimentos ele gera ressentimentos,
mormente, quando datas importantes da família são passadas em branco,
pagamentos de contas não são efetuados, e compromissos assumidos são
olvidados” - era o que dissertava o palestrante, cheio de autoridade.
Nessa altura do campeonato, eu já tinha começado a afundar na confortável poltrona do auditório, pois não é que eu tinha esquecido de pagar as últimas contas de água e de luz da minha casa? Quase foram cortadas, e nem imaginem a bronca que levei da patroa enfurecida com a minha vacilada.
“O quarto sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada, é a insônia. O
indivíduo não consegue mais manter um padrão de eficiência durante o
dia, para compensar, força a mente ao máximo nas horas de vigília, e só
acaba chovendo no molhado”.
Com esta expressão final, senti que o famoso doutor tinha deixado escapar uma ponta de ironia em sua voz.
Eu estou dormindo cada vez menos, minha mente, qual um potro selvagem, se recusa a desligar-se.
Vivo plugado, elétrico, com os pensamentos parecendo feras indomáveis, a minha situação está complicada demais.
Durmo tarde, acordo cedo, tenho lapsos de esquecimento, os nervos estão aos pandarecos, arrasto-me fatigado durante o dia.
O especialista tem razão em tudo o que falou até aqui, a minha reserva nervosa está desequilibrada mesmo.
“O quinto sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada são as frequentes dores de cabeça. O indivíduo acusa pontadas vagas que o incomodam sem parar. Sem que ele se dê conta, sua mão está sempre pousada sobre a cabeça, sinal claro do incômodo que o atormenta” – eram as palavras professorais do orador.
Eu me vangloriava com a minha mulher quando ela reclamava das periódicas enxaquecas que a atingiam:“O degas aqui, ó – batia na cuca – nem dor de cabeça tem”. Isso foi há tempo, agora, as pontadinhas não me largam mais um minuto sequer.
“O sexto sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada, é uma leve depressão. No começo, a sensação que o indivíduo tem é a percepção clara de auto- comiseração. Sente-se como um coitado, alardeia que ninguém mais liga para ele. Depois dessa fase, é tomado por uma raiva feroz contra tudo e contra todos. Sua
ira, ao final, volta-se contra ele mesmo, e o resultado é a autoestima
mergulhada em um baixíssimo nível, bem próximo ao zero.
Nesse ponto, o indivíduo está enredado em sérias complicações” - esclarecia o famoso doutor.
Confesso, sem nenhum constrangimento, que eu estava sentindo pena de mim naquele exato momento.
Lembro
que esse sentimento de autopiedade vinha acompanhado de uma raiva
surda, inexplicável, e se manifestava nos momentos mais inapropriados.
Para um ministro religioso, convenhamos, isso não pega nada bem, sentia-me culpado até à medula.
A
minha autoestima estava quase no fundo do poço, desconfortável e
aflito, tentava a todo custo, disfarçar o impacto dos argumentos, mas o cidadão tinha
me enquadrado direitinho.
“O sétimo sinal que se manifesta em quem está com a reserva nervosa desequilibrada é a fadiga crônica.
O indivíduo é acometido por um cansaço tal que, por mais que durma, a fadiga teima em continuar” – enfatizou o médico cheio de moral, com a plateia na palma da mão.
Não é preciso nem dizer que eu estava entregue, ainda mais depois desse último tópico.
Eu
me sentia extremamente cansado, se pudesse, encostar-me-ia no primeiro
canto disponível, mas com cuidado para não desabar como um saco de
batatas ao primeiro movimento mais brusco.
Minha situação estava
difícil, muito difícil.
Acabada a palestra, continuei por ali, com o olhar perdido, com cara de bobo, sem prestar atenção em nada à minha volta.
De repente, tive um sobressalto ao ouvir uma expressão muito conhecida que soou muito estranha naquele ambiente:
“Irmão pastor! O senhor por aqui ?”
Não preciso nem dizer quem era a peça falante, era ele, ele mesmo, a figurinha carimbada do Velho João Amorim.
O que me irritou logo de cara, foi a colocação que ele fez:
“O senhor por aqui ?”
Como se fosse coisa do outro mundo eu estar numa conferência como aquela, aliás, pensando bem, eu que deveria estar perguntando a ele:
“O que o senhor está fazendo por aqui?”
Mas não deu tempo, o velho sem titubear, liberou
sua matraca incontrolável:
“Irmão
pastor! O senhor anda meio esgotado, dá para ver. Eu já venho notando
isso há algum tempo. Os irmãozinhos da Igreja também andam percebendo como o
senhor está perdendo o controle com facilidade. Dizem que antes o
senhor era um homem classudo, fino, elegante, educado, jamais elevava a
voz, e que agora – desculpe dizer isso – perdeu a pose, está desleixado
no vestir, aparece com a barba por fazer, fica com um ar distante, mal
humorado, não parece nem de longe com aquele pastor que deixou a todos
fascinados quando por aqui chegou. Ainda bem que descobriu que precisa
de tratamento, não é mesmo? Irmão pastor! Perdoe a minha intromissão, o
senhor me conhece bem, sabe que eu não consigo me conter, portanto, vou
lhe confessar: fui eu quem forçou a sua esposa a lhe convencer a estar
nesta conferência. Não resisti e vim até aqui só para checar se o senhor
tinha vindo mesmo”
Ah! isso era demais, esse velho abelhudo estava passando das contas.
Já que a minha reserva nervosa estava desequilibrada, aproveitaria para extravasar todo o
descontrole acumulado para cima do velho xereta.
Foi quando me lembrei das palavras do famoso doutor e do ambiente onde me encontrava, contive-me a custo.
“Irmão pastor! – continuou o abelhudo, sem notar a minha extrema irritação
– “o meu conselho é: reúna a sua diretoria, peça uma licença para lidar
com calma de sua recuperação. Não teime em continuar, as coisas só vão
piorar. Não se preocupe com a Igreja, no começo, vai ser uma chiadeira
geral, mas depois, todos entenderão que é preciso zelar pelo bem-estar
do ministro esgotado. Afinal, ele é a imagem da instituição,carece, portanto, de todo cuidado possível”.
Que o Velho João Amorim é um doidivanas todo mundo sabe! Que é um chato de galochas, todo mundo também sabe!
O que quase ninguém sabe é que o homenzinho entende de gente como poucos.
Nenhum
dos meus catedráticos assessores notou a minha aflição, mas o
velho intrometido, sempre alerta, estava de olho em minhas necessidades.
E o que ele fez ? Levou minha esposa a me convencer a vir ao congresso ministrado pelo famoso psiquiatra internacional, tudo bem urdido, só para que eu fosse beneficiado, devo mais essa ao Velho João Amorim.
Livre do diácono abelhudo, procurei recordar-me das receitas do especialista para manter a minha reserva nervosa equilibrada:
Resguardar-me, seja qual for a situação, até mesmo nas de grande entusiasmo, isso é comedimento.
Distanciar-me, sempre que puder, do foco principal dos acontecimentos e manter tudo sob perspectiva com um certo nível de indiferença.
Ceder pontos de vista em embates, evitá-los se for o caso, de nada adianta ganhar discussões.
Evitar viver apagando incêndios, para isso,praticar o saudável hábito da prevenção, procurando sempre a
antecipação em qualquer coisa.
Disciplinar-me em
relação a tudo, principalmente naquilo que traz dividendos
pessoais, como o sono e o folguedo, que ele qualificou de prática de
repouso em medida certa.
Vencer preconceitos, eles são devastadores, provocam panes de ansiedade que detonam as
estruturas emocionais.
Praticar ações que beneficiem aos outros,
levando em conta que objetivos egoístas consomem grande carga de
energia, enquanto que objetivos humanitários, geram considerável energia.
Naquela noite, algo
aconteceu. Antes de cair em um sono reparador, o que há muito não
ocorria, lembro-me apenas que recitava um famoso verso do livro de
Salmos:
“Em paz também me deitarei e dormirei, pois só tu Senhor me fazes habitar em segurança” ( Sl. 4:8 )
Foi o adeus definitivo à Reserva Nervosa Desequilibrada.